Juliette Récamier e seus dois retratos

Retrato de Juliette Récamier, 1802-1805. François Gérard. Musée Carnavalet

Outubro em Paris é o mês em que a cidade mais respira arte. O outono marca as inaugurações das grandes exposições e a Art Basel Paris transforma a capital no epicentro do mercado de arte. Para quem vive aqui, este é o momento mais vibrante do calendário artístico, quando museus, galerias e feiras criam uma constelação de experiências que nos lembram por que Paris tem a maior oferta cultural do mundo.

Sabe aqueles momentos em que você está fazendo uma coisa e, de repente, tropeça em algo que muda completamente o rumo do seu dia? Pois é, foi justamente neste contexto que uma pesquisa aparentemente simples sobre museus parisienses me levou a uma descoberta fascinante. Estava eu aqui quieta estudando sobre o Musée Carnavalet, que conta a história de Paris, quando me deparei com uma das obras mais importantes do acervo: o retrato de Juliette Récamier por François Gérard, uma pintura que até então eu desconhecia.

De cara eu vi a semelhança com a famosa obra inacabada de Jacques-Louis David no Louvre. Essa pintura, além de linda, tem um lugarzinho bem importante no meu coração pois eu escrevi sobre ela e uso como exemplo pra dar aulas sobre Neoclassicismo. E olha só a coincidência: o Louvre estava prestes a inaugurar uma retrospectiva monumental de David, a primeira desde 1989. Sincronicidade que chama, né?

O Neoclassicismo: Revolução inspirada na Antiguidade

Antes de mergulharmos na história de Juliette, preciso te contar algo sobre o neoclassicismo que talvez você não saiba: ele foi uma revolução política, moral e social tanto quanto estética.

Final do século XVIII, início do XIX: a Europa está em ebulição. A Revolução Francesa aconteceu, alimentada pelas ideias iluministas de razão, liberdade e progresso. O mundo antigo está sendo (literalmente) desenterrado das cinzas do Vesúvio em Pompeia e Herculano. E os artistas olham para Grécia e Roma não com nostalgia, mas com urgência. Como se dissessem: "Então tá, já existiu um tempo em que a virtude e a república eram possíveis. Bora fazer isso de novo."

Jacques-Louis David pintava manifestos. Cada corpo esculpido em tinta, cada drapeado à antiga, cada cenário despojado era uma escolha política. E quando ele pinta Marat assassinado na banheira, transforma um crime político numa pietà laica, a virtude revolucionária santificada.

O neoclassicismo é austero, sim. Geométrico, sim. Mas não é frio, é ardente de uma paixão meio abafada. Tipo contida como lava de vulcão? (No caso, a erupção depois é o Romantismo). É a estética da razão a serviço da emoção política. E é nesse contexto que Juliette Récamier entra em cena.

Juliette: A Estrategista da Própria Imagem

Juliette Récamier (1777-1849) é um daqueles personagens que você precisa conhecer para entender o período. Casada aos 15 anos com o banqueiro Jacques-Rose Récamier (que alguns biógrafos sugerem ser seu próprio pai biológico, sim, a história é complicada), ela transformou seu hôtel particulier na rue du Mont-Blanc no grande núcleo da vida intelectual parisiense.

Madame Récamier, 1800. Jacques-Louis David. Museus Reais de Belas-Artes da Bélgica

Mas aqui está o que me fascina. Juliette foi uma estrategista da própria imagem. Numa época em que as mulheres tinham pouquíssimos espaços de poder formal, ela construiu sua influência através de algo que controlava completamente: a forma como era representada.

Exigente, ela encomendou retratos aos maiores mestres da época. David, Gérard, Chignard, Canova. Supervisionava as gravuras que multiplicariam essas imagens pela Europa. Não era vaidade, era construção política de identidade. Era compreender, no início do século XIX, algo que levaria décadas para se consolidar: imagem é poder. E ela fez algo extraordinário. Encomendou dois retratos quase simultâneos, aos dois maiores pintores do neoclassicismo francês. E eles não podiam ser mais diferentes.

David: A Austeridade Radical do Inacabado

Em 1800, Jacques-Louis David aceita pintar Juliette. E o que ele cria é radical. Primeiro: a composição horizontal. Raro para retratos individuais, geralmente reservada para grupos. Juliette está reclinada num divã (que depois seria batizado de "récamier"), descalça, vestindo uma túnica, o corpo recurvado, o olhar direto, mas distante. O espaço é quase vazio, um candelabro, a escuridão ao fundo. Tons terrosos, marrons, cinzas. E o branco impecável do vestido.

É austero. É quase ascético. Há uma tensão incrível entre proximidade (ela nos olha) e distância (ela está completamente em seu próprio mundo).

E então David... diz STOP. Deixa o quadro inacabado.

As histórias variam. Alguns dizem que ele descobriu que François Gérard, seu ex-aluno, também tinha sido contratado para o mesmo retrato. Outros dizem que Juliette se irritou com a lentidão dele, ou com o tom mais claro que ele deu aos seus cabelos. O que se sabe é que David se recusa a continuar dizendo: "Madame, as damas têm seus caprichos, os artistas também. Permita-me satisfazer o meu." Divou.

E sabe o que aconteceu? O inacabamento virou a força da obra. Você vê as pinceladas, os esfregaços, a técnica nua. Delacroix a descreveria como "uma singular mistura de realismo e ideal." É uma obra que antecipa o modernismo com sua economia de elementos, que permite os vazios que fazem respirar. Quando olho para esse quadro (que está no Louvre, e vocês precisam ver ao vivo), penso: às vezes não terminar é a grande ousadia.

Gérard: O Charme que Conquistou Juliette

E aí entra o retrato que me fisgou no Carnavalet. François Gérard, entre 1802 e 1805, cria sua versão de Juliette Récamier. E, meu amor, o ex-aluno não deixa NADA a desejar ao mestre.

Gérard inicialmente planejou pintá-la nua, saindo do banho, mas optou por algo mais sóbrio, porém não menos sedutor. Juliette está sentada numa cadeira "etrusca", dentro do que parece ser um banheiro à antiga (dá pra ver os orifícios de drenagem no mármore, fazendo um padrão meio de flor, detalhe que eu adoro).

Mesma túnica branca à la grecque, mas agora com um xale vermelho vibrante. Mesma pose descalça. Mas o olhar é diferente, mais íntimo. Onde David criou distância e mistério, Gérard oferece charme e proximidade. Onde David propôs austeridade, Gérard sugere sensualidade contida (olha o vulcão aí).

E Juliette? Prefere Gérard. Claro que prefere. Este é o retrato que ela multiplica em gravuras, supervisionando pessoalmente cada detalhe. Este é o retrato que ela presenteia ao Príncipe Auguste da Prússia em 1822. Este é o retrato que funciona para a narrativa que ela quer construir sobre si mesma.

E olha só: não é uma questão de um ser melhor que o outro. São duas leituras igualmente válidas da mesma mulher, uma mais filosófica, outra mais mundana. E Juliette foi esperta o suficiente para usar ambas.

A Exposição que Fecha o Círculo

E é aqui que tudo se conecta de um jeito quase mágico. Em outubro de 2025, o Louvre inaugura a primeira grande retrospectiva de Jacques-Louis David justo no bicentenário de sua morte no exílio em Bruxelas, em 1825.

São cerca de cem obras reunidas, incluindo o "Marat Assassinado" (emprestado dos Museus Reais de Belas-Artes da Bélgica, porque o do Louvre é uma cópia, tá?), o monumental fragmento do "Juramento da Sala do Jeu de Paume" vindo de Versalhes, "As Sabinas", e claro, aquele retrato inacabado de Juliette Récamier que me levou a essa história toda.

A exposição, que vai até 26 de janeiro de 2026, propõe uma releitura de David que a gente precisava há muito tempo. Sobre um artista que atravessou seis regimes políticos (!), participou ativamente da Revolução, pagou o preço do exílio político e continuou pintando até o fim. É pra entender que arte e política não tinham como se separar nessa época.

E para mim, que encontrei essa nova Juliette Récamier no Carnavalet, é também sobre como as melhores descobertas acontecem quando a gente está prestando atenção. Quando a gente não só olha, mas .

O que o Neoclassicismo Me Ensina Hoje

Sabe o que eu mais amo nisso tudo? É que estudar história da arte não é decorar datas e estilos. É entender como pessoas reais, em momentos históricos específicos, usaram imagens para construir mundos, identidades, revoluções.

Juliette Récamier sabia que controlar sua imagem era controlar sua narrativa. David sabia que cada pincelada era um gesto político. Gérard sabia que responder ao mestre era também se afirmar como artista.

E eu, pesquisando museus em Paris numa manhã qualquer de outono, descobri que ainda tenho tanto a aprender sobre o neoclassicismo, esse período que eu achava que conhecia, mas que continua me surpreendendo. É para isso que serve a história da arte: não para nos fazer sentir cultos, mas para nos fazer sentir vivos. Para nos mostrar que as perguntas que fazemos hoje sobre imagem, poder, identidade, política são as mesmas que Jacques-Louis David e Juliette Récamier faziam há mais de 200 anos.


A exposição Jacques-Louis David está no Louvre até 26 de janeiro de 2026. O retrato de Juliette Récamier por François Gérard pode ser visto no Musée Carnavalet, no Marais. Veja os dois. Ao vivo. Sempre ao vivo.

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