Minimalismo: ideia e matéria

Na terça-feira passada, eu fui ao primeiro dia de abertura da exposição Minimal na Bourse de Commerce, com a minha aluna maravilhosa a Gigi Barreto, da Casa Vida Cenário. E olha, eu preciso confessar uma coisa: o Minimalismo é um dos meus movimentos preferidos. Sempre foi. Acho que é por causa da honestidade brutal dos materiais. Ou a ideia de que você pode tirar tudo e ainda assim sobra alguma coisa. Estudei bastante sobre esse movimento, que me ensinou a olhar pro espaço de outro jeito, e cada vez que volto a ele, descubro uma camada nova. Pois respeitar o vazio é entender que menos pode ser sempre mais.

E estar ali, cercada por mais de 100 obras de uns 50 artistas que atravessam décadas e continentes, foi muito potente. A curadoria é da Jessica Morgan, diretora da Dia Art Foundation (uma instituição norte-americana contemporânea super importante), e ela fez um trabalho lindo. Organizou tudo em sete núcleos: Luz, Grid, Superfície, Materialidade, Mono-ha, Monocromia e Equilíbrio.

Tem Dan Flavin, que eu já tinha visto numa visita anterior, com aquelas instalações de luz fluorescente que transformam o espaço todo. Sol LeWitt com suas estruturas murais que são pura matemática virada poesia. Agnes Martin e seus grids delicados que pedem silêncio. E On Kawara com as Date Paintings que vi bastante na Art Basel (antiga FIAC) em diversas edições. O cara pinta a data do dia, só isso, e consegue falar sobre tempo, existência, permanência, fragilidade.

E olha o presente: Lygia Pape está lá! Primeira exposição individual dela, parte do Ano Brasil-França 2025. Eu amo o trabalho dela, que entendeu tudo sobre corpo, espaço, experiência compartilhada e conversa demais com a proposta da curadoria. Sem contar a contribuição pro design gráfico: foi ela quem desenhou as icônicas embalagens dos biscoitos Piraquê. E eu acredito muito nesse trânsito entre as disciplinas como arte, design e arquitetura. Essa exposição, que eu também visitei em setembro, já foi um lindo prelúdio pra Minimal.

Como tudo começou (e por que importa)

Mas deixa eu te contar um pouco da história, porque entender de onde vem o Minimalismo faz a gente ver a exposição com outros olhos.

Final dos anos 1960, início dos 1970. O mundo estava pegando fogo de um jeito que a gente até fala hoje: guerra do Vietnã, ditaduras na América Latina, movimentos estudantis em Paris, Revolução Cultural na China. E ao mesmo tempo: pílula anticoncepcional, movimento hippie, rock'n'roll, minissaia. Tudo ao mesmo tempo, tudo junto, tudo se reconfigurando em alta velocidade.

A arte respirava esse mesmo ar. Tem um livrinho que eu amo, da Ligia Canongia, que fala sobre o legado dos anos 60 e 70, e ela resume bem o clima: foi uma época de multiplicidade de estilos, de ruptura dos suportes tradicionais, de crítica ao sistema oficial da arte, de valorização de situações instáveis. O "lugar" da obra mudou. A comunicação de massa entrou em cena. O cotidiano virou matéria-prima.

E aí, no meio de toda essa explosão, surge o Minimalismo. Mas com uma postura radical e quase contraintuitiva: simplificar. Em vez de gritar mais alto, silenciar. Em vez de acumular, reduzir ao máximo. Sai o sujeito e a subjetividade e entra o objeto e a objetividade.

Foi mais uma atitude compartilhada do que um movimento organizado. Os artistas, aliás, odiavam o termo "Minimalismo", achavam reducionista, negativo. Mas enfim, o nome pegou. E o que importa é a ideia.

A arte que não precisa de explicação, só é

Donald Judd foi quem deu corpo teórico pra essa ideia toda. Em 1963, ele escreveu um texto chamado "Objetos Específicos", onde percebeu que o trabalho que ele e outros estavam fazendo não cabia mais nas gavetas de "pintura" ou "escultura".

Era tridimensional. Espacial. Ocupava o mundo real, não simulava outra coisa.

E ele explicava que no trabalho tridimensional, a coisa toda é feita segundo propósitos complexos, mas esses propósitos não estão dispersos, eles estão todos ali, afirmados por uma forma única. Não precisa ter um monte de elementos pra olhar, comparar, analisar. A coisa como um todo, a qualidade dela como um todo, é o que interessa.

Eu adoro isso. Porque é quase um alívio, sabe? Você não precisa decifrar nada. Você precisa estar presente. Perceber. Sentir o espaço ao redor. Deixar o corpo reagir antes da cabeça.

De onde vem essa história toda

O Minimalismo não nasceu do nada. Ele bebe em várias fontes. Tem Duchamp ali atrás, com o ready-made, aquele gesto revolucionário de dizer que qualquer objeto pode ser arte. Tem os construtivistas russos, o Suprematismo, aquela turma que já nos anos 1920 defendia uma estética baseada no rigor e na abstração geométrica, deixando a figuração de lado.

E tem Brancusi, o escultor romeno que criou a Coluna sem fim, aquela obra que sobe, sobe, sobe e parece não terminar nunca. Ele foi um dos primeiros a questionar a importância do pedestal na escultura. Os minimalistas levaram isso às últimas consequências: eliminaram a base. A obra estava ali, no chão, no espaço real, sem hierarquia, sem moldura, sem distância.

E isso é crucial: a obra não é pensada pra estar em qualquer lugar. Ela é feita para aquele lugar específico. É o embrião do que hoje a gente chama de instalação.

Materiais que não mentem

Outra coisa que salta aos olhos: a honestidade dos materiais. Fórmica, alumínio, acrílico, latão. Materiais industriais, usados sem disfarce. Judd falava que os materiais são simplesmente materiais. Eles são específicos. E se você os usa diretamente, eles ficam ainda mais específicos. Tem uma objetividade na identidade inexorável de um material.

Traduzindo: alumínio é alumínio. Acrílico é acrílico. Não tem metáfora. Não tem truque. Não tá fingindo ser mármore. Não quer contar uma história sobre o sofrimento do artista. E isso é, de certa forma, libertador. Porque quando você se liberta de mil intepretações, você pode começar a ver de verdade. Os objetos minimalistas têm uma unidade estrutural total: cor, forma e superfície integradas numa coisa só. E essa coisa não simboliza nada, não representa nada. Ela simplesmente... é.

Menos é mais (de verdade)

Os minimalistas também dialogavam com a arquitetura moderna, especialmente com Mies van der Rohe e seu famoso "menos é mais". Pegaram essa ideia e traduziram em volumes no espaço.

E aqui entra algo que eu acho maravilhoso: o protocolo de trabalho deles. Os minimalistas substituíram a composição formal, aquela ideia clássica de equilíbrio e harmonia entre elementos diferentes, por uma ordem sistemática e progressiva. O segredo? Um módulo que se repete.

É (quase) matemático. Você cria uma unidade básica, simples, e a multiplica. Pode ser uma caixa, um cubo, uma barra de luz, um elemento geométrico qualquer. E aí você repete. Não à toa, não aleatoriamente, mas segundo uma lógica interna, uma estrutura.

É o que a gente vê nas pilhas de tijolos de Carl Andre, nas caixas metálicas de Donald Judd alinhadas na parede, nas estruturas de Sol LeWitt que parecem infinitas. Não tem hierarquia entre as partes. Todas têm o mesmo peso, a mesma importância. A obra se faz pela soma, pela progressão, pela insistência daquele módulo no espaço.

E tem algo de quase meditativo nisso, sabe? A repetição cria um ritmo. Ela não é monótona, ela é hipnótica. Faz você perceber o espaço entre as coisas, o intervalo, o vazio que também é forma.

Tem algo da Pop Art ali também, mas levado pra outro lugar. Onde a Pop celebrava a cultura de massa com cor e ironia, o Minimalismo propunha silêncio e presença. E olha, eu sei que pode parecer seco. Frio. Distante. Mas não é. É intenso. É político. É um jeito de resistir ao excesso, ao barulho, à saturação de imagem que a gente vive hoje.

É um convite a parar. Respirar. Perceber.

Por que isso ainda importa

O Minimalismo mudou tudo. Abriu caminho pra Arte Conceitual, pra Land Art, pra tudo que hoje a gente chama de site-specific, de experiência, de instalação. Porque esses artistas entenderam algo fundamental: arte não precisa representar o mundo pra existir dentro dele.

Ela pode simplesmente estar. Ocupar espaço. Fazer você andar diferente numa sala.

E a exposição na Bourse de Commerce deixa isso muito claro. O percurso circular já é uma experiência. Como o espaço respira ao redor de um objeto. Como uma grade pode ser hipnótica. Como o monocromático pode ser infinito.

A artista Meg Webster ainda criou uma obra especialmente pra essa exposição: Circle of Branches (2025), feita com elementos vivos que precisam de rega, poda, cuidado diário. A natureza dentro do museu. Não como metáfora, mas como presença viva. 

Um convite

Se você estiver por Paris (ou planejando vir), vai. Vai com calma. Sem pressa. Deixa o corpo falar antes da cabeça. Porque no fundo, é disso que o Minimalismo sempre tratou: de nos ensinar a ver de novo. E no mundo de hoje, cheio, ruidoso, saturado, isso não é pouco. É quase um ato de resistência. Um jeito de dizer: o essencial existe. E ele fica quando a gente tira tudo que sobra.

 

Informações práticas:

Minimal Bourse de Commerce – Pinault Collection 8 de outubro de 2025 a 19 de janeiro de 2026 2 Rue de Viarmes, 75001 Paris

(Dica: se puder, vá numa sexta à noite. O museu abre até mais tarde e tem algo de mágico em ver arte contemporânea com a cidade já acesa lá fora.)

Quer ir mais longe?

Sabe essa coisa de "ensinar a ver de novo" que eu falei aqui sobre o Minimalismo? É exatamente isso que a gente faz na Mentoria Rizoma de História da Arte. Não é aula expositiva. Não é decoreba de datas e nomes. É um jeito de olhar pra arte (e pro mundo) com mais profundidade, mais prazer, mais conexão. É sobre entender de onde vêm as coisas que você vê, e como isso muda completamente a sua forma de criar, de trabalhar com imagem, de pensar design, arquitetura, visualidade…

Se você sente que quer afinar o olhar a gente marca uma conversa aqui.

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