Jacques-Louis David no Louvre: Um Artista Entre Revoluções

Como disse no texto sobre Juliette Récamier, eu estava contando os dias para essa exposição. E gente... que alegria poder dizer: valeu cada minuto de expectativa.

Mas tem uma história surreal que preciso contar antes de falar da exposição em si. No domingo, dois dias depois da minha visita ao Louvre, acordei com a notícia bombástica: roubaram as joias de Napoleão do museu! Um assalto relâmpago, de apenas 7 minutos, digno de Arsène Lupin. Os criminosos entraram pela zona de obras no Sena usando um guindaste, quebraram as vitrines da Galeria Apollo com motosserras e fugiram em scooters com NOVE joias imperiais do século XIX, incluindo a tiara da Imperatriz Eugenie, esposa de Napoleão III (que depois foi encontrada danificada na rua, ufa!). O maior roubo no Louvre desde a Mona Lisa em 1911! Eu falei disso bastante no Instagram e repostei as notícias das mídias locais.

É uma coincidência muito doida, né? Eu lá, dois dias antes, admirando David e sua paixão não correspondida pelo personagem de Napoleão. E de repente, as próprias joias do imperador desaparecem num golpe cinematográfico. O museu foi obviamente evacuado e Paris tá em polvorosa.

A Exposição

Sabe quando você entra numa mostra achando que já conhece bem sobre o artista e sai de lá com a sensação de que acabou de ver alguém pela primeira vez? Foi exatamente isso que aconteceu comigo no Louvre.

A retrospectiva de Jacques-Louis David (a primeira de grande porte desde 1989, já não era sem tempo!) reúne cerca de 100 obras que atravessam toda a carreira dele. Eu conhecia David, claro. Todo mundo conhece aquelas imagens icônicas da Revolução Francesa, do Napoleão no cavalo empinado, do Marat morto na banheira. Mas o que eu vi ali foi muito além: um homem complexo, cheio de contradições, ambicioso, vulnerável, corajoso e, sim, também oportunista. Um ser humano inteiro.

O Louvre é praticamente a casa de David, tem a maior coleção mundial das obras dele, incluindo aquelas telas gigantescas que não dá nem pra pensar em transportar (tipo A Coroação de Napoleão, que tem uns 10 metros de largura). E conseguiram trazer emprestado o Marat Assassinado original de Bruxelas, o fragmento imenso e inacabado do Juramento do Jeu de Paume (que veio de Versalhes), O Juramento dos Horácios, A Intervenção das Sabinas, e o retrato etéreo e misterioso da Madame Récamier que eu já amava antes e agora amo ainda mais.

Caravaggio e a Luz da Revelação

Olha, uma das coisas que mais me surpreendeu foi descobrir o quanto Caravaggio influenciou David. E a história é meio melancólica.

Em 1779, David estava numa depressão profunda. Sabe aquela fase em que nada faz sentido? Então. Seu mestre, Joseph-Marie Vien, preocupado, decidiu mandá-lo para Nápoles. E foi lá, diante das obras de Caravaggio, que aconteceu o clique. David, que tinha dito ao mestre que "a Antiguidade não me seduzirá; ela carece de espírito, não move a alma", percebeu que tinha que recomeçar do zero. Que tudo que ele vinha fazendo estava... fora da ordem, errado.

E olha que maravilha: você vê essa influência em obras fundamentais da carreira dele. A Morte de Marat (1793), Cupido e Psiquê (1817), todas têm esse DNA caravagesco na veia. Um contraste brutal entre luz e sombra, o realismo que te pega pelo pescoço, a iluminação dramática que parece teatro. David absorveu tudo isso e criou um vocabulário visual. Transformou em algo completamente seu.

Uma Vida Marcada pela Persistência

A vida de David não foi nada fácil. Aos 9 anos, perdeu o pai num duelo. Imagina. E depois, na Academia Real, fracassou três vezes seguidas no concurso do Prix de Rome. A frustração foi crescendo, crescendo, até que depois da terceira rejeição ele tentou se matar. Parou de comer. Foi um gesto dramático (e até meio teatral, típico dele) que, felizmente, não deu certo. Só em 1774 ele finalmente ganhou o tal prêmio e pode ir pra Itália. Pensa na resiliência que isso exige. Na teimosia também, vamos ser sinceros.

E é isso que o torna tão interessante: essa mistura toda. A persistência diante da rejeição, a capacidade de se reinventar politicamente (às vezes de forma questionável), a ousadia de abrir espaço para mulheres artistas no ateliê dele, uma paixão não correspondida pela figura de Napoleão, o exílio no final da vida. Tudo isso junto forma o retrato de alguém profundamente humano. Cheio de contradições, sim. Mas também cheio de determinação.

Um Pioneiro Silencioso: David e as Mulheres Artistas

Aqui tem uma história que pouca gente sabe e que me deixou genuinamente emocionada: David foi o primeiro artista da época dele a abrir o ateliê para mulheres. Ele aceitou as alunas da Élisabeth Vigée Le Brun no seu estúdio. E isso causou um escândalo monumental pois a Academia e o Superintendente dos Edifícios do Rei ficaram furiosos. Pensa bem: estamos falando do Antigo Regime, quando as academias reais eram territórios absolutamente masculinos. E lá estava David, abrindo as portas.

Depois, no exílio em Bruxelas, ele se cercou de artistas mulheres, como a Sophie Rude. E isso muda completamente a leitura que se faz do Juramento dos Horácios (1784), né? Sabe aquela história de "ah, os homens agem e as mulheres choram"? Pois é. David sabia ser bem mais complexo que isso. Tanto que em A Intervenção das Sabinas (1799), pintado depois de ter sido preso, foi uma das primeiras grandes telas onde as mulheres são as protagonistas ativas. São elas que param a batalha, que trazem a paz. É potente e feminista.

O Artista Revolucionário e Suas Contradições

David não queria ficar nos bastidores pintando a História: ele queria estar dentro dela, fazendo acontecer. E conseguiu. Foi um dos primeiros artistas a assumir um papel político de verdade, de primeiro escalão.

Eleito deputado da Convenção Nacional em 1792, votou pela execução do rei Luís XVI em 1793. Sem titubear. "Ele viveu em um mundo onde não se podia ser um grande pintor sem os favores do rei, beneficiou-se disso, e mesmo assim votou na execução de Luís XVI sem o menor remorso", explica o curador da exposição.

E tem mais: durante o Terror (1793-1794), ele ficou colado em Robespierre. Pintou os mártires da Revolução, organizou os funerais de Marat, chegou a querer expor o cadáver embalsamado (desistiu só porque o corpo já estava em decomposição, imagina a cena). É um capítulo sombrio e ao mesmo tempo envolvente da vida dele.

Quando guilhotinaram Robespierre, prenderam David também. Mas aí entrou aquela "imensa aura de artista" dele e a habilidade de se defender que, convenhamos, o cara tinha de sobra. Escapou da guilhotina. Sobreviveu. Se reinventou. De novo.

Napoleão: Amor Não Correspondido

Aqui tem uma das melhores histórias. David era completamente fascinado por Napoleão. Obcecado, mesmo. Via nele "o homem providencial, surgido da Revolução, que chega para salvar a França". Pintou obras gigantescas glorificando o imperador - Bonaparte Atravessando os Alpes (1801), A Coroação de Napoleão (1805-07) ...

Mas olha a ironia: Napoleão usava as imagens do artista como propaganda, mas nunca, nunca mesmo, apreciou de verdade o trabalho dele. O primeiro retrato que David fez pro imperador não agradou. E pronto, acabou. Napoleão nunca mais fez encomendas diretas pra ele.

E mesmo assim, David continuou apaixonado pela figura napoleônica. Serviu ele até o fim. Quando Napoleão caiu em 1815 e David (que tinha assinado o Ato Adicional repudiando os Bourbon) foi exilado pra Bruxelas, onde ficou até morrer em 1825.

Cadeiras, Divãs e Tronos: O Batismo de um Móvel

E aqui a gente chega no ponto que mais me interessou. Não sei se é porque sou obcecada por cadeiras (vocês que me acompanham sabem), mas descobrir a importância do mobiliário nas obras do David foi uma das grandes alegrias dessa visita.

Ele não colocava uma cadeira ali só pra encher espaço. Cada móvel tinha um significado, uma presença. Os personagens habitavam esses cenários compostos com um cuidado quase obsessivo.

E tem uma história que já contei no outro post: o retrato inacabado da Madame Récamier (1800). Juliette tinha 23 anos, era a "It girl" de Paris, anfitriã de salões onde todo mundo queria estar, linda, inteligente, icônica. David a pintou reclinada num divã de estilo Diretório, num ambiente super minimalista que faz ela brilhar ainda mais. O quadro nunca foi terminado. Récamier ficou impaciente com a lentidão dele e foi lá e encomendou um retrato pro aluno do David, o François Gérard. David ficou FURIOSO. Largou o quadro. Deixou incompleto.

Mas olha que coisa maravilhosa: aquele divã específico, sem encosto, com uma cabeceira alta e curva e um apoio baixo pros pés, passou a se chamar récamier. Até hoje! Um quadro inacabado batizou um móvel. Como se o objeto tivesse sido consagrado pelo gesto pictórico. A própria Récamier tinha esse tipo de assento no salão dela, que hoje tá preservado no Louvre.

E isso aparece na obra toda dele. Nos retratos das filhas gêmeas, no trono de Napoleão, nas grandes composições históricas. As cadeiras, os divãs, os tronos não são cenário: são personagens. Dialogam com os corpos, com os gestos, com a narrativa histórica que David tá construindo.

Seis Regimes, Uma Trajetória Singular

Pensa só: David atravessou seis - SEIS! - regimes políticos completamente diferentes entre os séculos XVIII e XIX. A Monarquia Absoluta de Luís XV e XVI, a Revolução Francesa, o Terror, o Diretório, o Consulado, o Império Napoleônico e, no final, o exílio durante a Restauração.

Quantos artistas conseguem não só sobreviver, mas prosperar através de tantas mudanças radicais? É de se respeitar. Claro que isso rendeu críticas de oportunismo. E sim, dá pra dizer que ele foi oportunista em vários momentos. Mas também mostra uma capacidade incrível de adaptar a arte aos diferentes contextos sem perder a essência do estilo dele. Como diz o curador Sébastien Allard, "o 'caso David' permanece verdadeiramente único na história da arte."

E é verdade, né? Único. Contraditório. Intenso. Humano.

Jacques-Louis David
15 de outubro de 2025 - 26 de janeiro de 2026
Musée du Louvre, Paris
Hall Napoleão

Reservas obrigatórias de 18 de outubro a 2 de novembro
Aberto todos os dias exceto terça-feira, das 9h às 18h
Visitas noturnas quartas e sextas até 21h45

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