"O mercado de arte não é a história da arte."
La Paix, de Martial Raysse (2023). A obra moumental presente no estande de Daniel Templon na Art Basel
"O mercado de arte não é a história da arte."
Foi num jantar outro dia que ouvi Daniel Templon, um dos galeristas mais respeitados da França, soltar isso com a naturalidade de quem viu décadas passarem e entender o essencial sobre esse sistema complexo em que vivemos. Simples assim. E essa frase ficou dentro de mim reverberando.
Dias depois, durante a Art Basel Paris, ele me mostrou uma pintura monumental de Martial Raysse e perguntou: quantas pessoas sabem da importância desse artista? Raysse é um dos maiores artistas vivos franceses, foi figura central da Nouvelle Figuration e dos Nouveaux Réalistes, trabalhou ao lado de Yves Klein, Arman e César. E mesmo assim, fora dos círculos especializados, é praticamente um desconhecido.
Fiquei pensando. Se o mercado valorizasse o que é historicamente relevante, Raysse seria um nome óbvio. Mas não é. O mercado privilegia hype, especulação, a obra que todo mundo quer ter. E a história da arte? Essa olha para outros lugares, com outros critérios. Tenho quase certeza que você nunca deve ter ouvido falar nele... As questões ficam: quem decide o que permanece, quais são as balizas, como se pensa a cotação de um artista. E o mais importante: o que significa fazer arte quando essas duas esferas nem sempre se encontram?
Uma semana intensa imersa no sistema
Outubro em Paris é intenso. A cidade se transforma num ponto de encontro para tudo que gira em torno da arte contemporânea. Este ano eu não parei: visitei a Art Basel Paris duas vezes, passei pela Ceramic Art Fair, pela Paris Internationale, pela Design Miami. Voltei com os pés cansados e a cabeça cheia de perguntas.
A Art Basel Paris 2025 aconteceu no Grand Palais e eu fui ao Avant-Première, um preview exclusivo que gerou vendas estimadas em 90 milhões de dólares no primeiro dia, que antes era sempre numa quarta e agora passou pra terça-feira. A feira reuniu 206 galerias de 41 países e recebeu mais de 73.000 visitantes.
A venda mais expressiva foi um Gerhard Richter de 1987 negociado por 23 milhões de dólares pela Hauser & Wirth. Outras vendas significativas: Ruth Asawa por 7,5 milhões, Modigliani por quase 10 milhões, Martin Kippenberger por 5 milhões, Georg Baselitz por 4 milhões.
Mas aqui está o que preciso dizer: essas vendas milionárias, essas galerias blue chip que dominam o Grand Palais, representam menos de 1% dos artistas que estão trabalhando neste momento no mundo. É uma elite minúscula, com critérios próprios, que não necessariamente correspondem ao que é historicamente relevante.
O que o mercado não consegue medir (e o que a história escondeu)
Enquanto caminhava pelos corredores da feira, entre obras perfeitamente iluminadas e transações de milhões, eu pensava nos milhares de ateliês espalhados pelo mundo. Artistas que acordam todos os dias e fazem o que fazem porque não conseguem não fazer. A maioria nunca vai expor na Art Basel. A maioria nunca vai vender uma obra por sete dígitos. E isso não torna o trabalho deles menos importante.
O Mercado da Arte opera segundo leis próprias: raridade, proveniência, desejo, status, especulação. É impulsionado por cifras que parecem desconectadas de qualquer outra realidade. O valor econômico nem sempre corresponde ao valor artístico ou histórico. Às vezes se encontram, mas é exceção, não regra.
A História da Arte, por sua vez, funciona com outro tempo, outros critérios. Ela é feita por pessoas que ousaram, que tiveram coragem de experimentar, de romper com o que estava estabelecido. Pessoas que criaram sem saber se alguém iria comprar, sem garantia de reconhecimento, movidas por uma necessidade interior de criação e expressão
Mas preciso ser honesta aqui: a história da arte também não é tão generosa assim. Durante séculos, ela reconheceu quase exclusivamente artistas homens. As mulheres que criavam, que experimentavam, que ousavam tanto quanto seus contemporâneos masculinos, foram sistematicamente apagadas das narrativas. Felizmente, isso começou a mudar. Desde 2022, com a publicação de livros como "A História da Arte sem os Homens", de Katy Hessel, há um movimento importante de resgate e reconhecimento.
A história da arte serve como referência, sim, mas também precisa ser questionada. É interessante pensar que ela foi inaugurada por um livro biográfico: "A Vida dos Artistas", escrito por Giorgio Vasari em 1550. Desde então, tem sido uma construção constante sobre quem importa e por quê. E essas narrativas sempre refletiram as estruturas de poder de cada época.
A relação complexa entre dois mundos
Essas duas esferas se alimentam, mas de maneiras nem sempre transparentes. O mercado precisa da história da arte para construir justificativas dos valores, para estabelecer genealogias que conectem artistas a movimentos, para validar escolhas. E a história da arte se beneficia do mercado quando ele preserva obras, financia instituições, mantém acervos. Mas é uma relação cheia de desencontros. O que vende bem hoje pode ser esquecido amanhã. E o que não encontra comprador agora pode ser reconhecido como fundamental décadas depois.
Durante a semana em Paris, transitando entre a Art Basel e outras feiras, fiquei pensando nessa distância entre o que é valorizado comercialmente e o que permanece culturalmente. Na Design Miami, vi objetos que borravam a fronteira entre funcionalidade e contemplação. Cadeiras que são esculturas, esculturas que poderiam ser cadeiras. Trabalhos que questionam categorias, que desafiam classificações.
A verdade é que medir a importância de uma obra nunca foi algo simples. Não é só o preço num leilão, não é só a quantidade de textos acadêmicos, não é só a influência sobre outros artistas. É tudo isso junto e mais um tanto de coisas intangíveis que a gente só consegue perceber com o tempo.
Vida fora do circuitão
Aqui está o que me deixa esperançosa: existe vida, muita vida, fora do circuitão das grandes galerias. Existem múltiplas maneiras de fazer arte circular, de construir uma prática artística consistente. Venda direta no ateliê, galerias independentes, feiras locais, plataformas online, residências artísticas, editais públicos. O mercado da arte é muito maior e muito mais diverso do que o que acontece no Grand Palais.
Preciso trazer um dado importante: 80% dos artistas não sobrevivem da própria arte na França. Imagina em outros países. É uma estatística dura, que precisa ser discutida. Mas ao mesmo tempo, Paris tem a maior oferta cultural do mundo. Museus, galerias, centros culturais, exposições acontecendo o tempo todo. E isso não é pouca coisa. É oportunidade para abrir o olhar, para ser mais sensível, para questionar o mundo e as narrativas que construímos.
O mercado global teve uma queda de 12% em 2024, totalizando 57,5 bilhões de dólares. O segmento ultra high end está em declínio, colecionadores estão mais cautelosos. Mas isso também revela que há espaço para obras mais acessíveis, para artistas que não se orientam por números estratosféricos. Há público, há desejo de arte que não custa milhões.
A história da arte é feita por pessoas que ousaram experimentar sem garantias. Pessoas que criaram porque precisavam criar, porque tinham algo a dizer, porque não conseguiam ficar em silêncio. Muitas delas trabalharam a vida inteira sem reconhecimento, sem vendas expressivas, sem galerias importantes. E mesmo assim, suas obras permanecem, continuam falando, continuam provocando pensamento.
E talvez seja isso: continuar fazendo não porque o mercado valida, não porque a história da arte já reconheceu, mas porque existe uma necessidade interior de fazer existir algo que ainda não existe. A urgência de criar é mais forte que qualquer sistema de validação.
O que fica
Quando voltei para casa depois dessa semana intensa, fiquei pensando nisso tudo. A história da arte tem espaço para a multiplicidade, para os que vendem caro e para os que mal conseguem pagar o aluguel do ateliê. O mercado escolhe poucos eleitos. A história da arte, mesmo com todos os seus vieses e apagamentos, eventualmente reconhece quem ousou fazer algo diferente, quem experimentou, quem teve coragem de seguir uma intuição.
O caso do Martial Raysse me ensinou algo fundamental: você pode ser essencial para a história da arte, pelo menos a francesa, e ainda assim não ser valorizado pelo mercado da forma que merece. E o oposto também é verdadeiro: você pode ter vendas expressivas hoje e não deixar marca nenhuma daqui a cinquenta anos. São sistemas que se tocam, mas não se sobrepõem.
Podemos habitar essas duas esferas com consciência. Podemos admirar o Gerhard Richter vendido por 23 milhões e, ao mesmo tempo, nos emocionar com o trabalho de artistas desconhecidos que estão experimentando agora. Podemos estudar a história da arte para entender melhor nosso próprio trabalho, questionar seus critérios excludentes, e ainda assim usar esse conhecimento como ferramenta.
Viver em Paris me ensina isso diariamente. É um privilégio imenso ver tantas coisas diferentes, ampliar o repertório constantemente. E ainda bem que existem essas oportunidades, essas outras formas de fazer circular a arte, alternativas de venda e reconhecimento.
O mercado vai seguir suas lógicas próprias. Mas a arte, essa coisa teimosa e necessária, vai continuar sendo feita por gente que precisa fazer, independente de cotações e reconhecimentos. Gente que acorda de manhã e vai pro ateliê porque tem algo para experimentar, para materializar, para fazer existir.
E talvez seja esse o grande motor: de dar forma a uma inquietação, de materializar um pensamento, uma ideia, que ainda não tem corpo. Isso permanece, com mercado ou sem mercado, com história ou sem história. Isso é o que move, o que faz a gente continuar.