A descoberta de um mestre esquecido (e a transformação de 16 anos de Paris em guia)

Roma e suas ruínas e belezas

No começo desse mês recebi um pedido inédito. A minha aluna querida Gigi Barreto, da Casa Vida Cenário, ia viajar para Roma com a filha e queria se preparar. Não com dicas de restaurante ou hotel. Ela queria aulas de história da arte específicas para a viagem delas. Aulas que ajudassem a entender o que iriam ver, que criassem um fio condutor entre as igrejas, os museus, as ruínas. Que transformassem o passeio em experiência de aprendizado real.

Aceitei sem pestanejar. Primeiro porque adoro esse tipo de desafio. Segundo porque percebi ali uma oportunidade rara de mostrar algo que defendo há anos: história da arte não é decoreba de datas e nomes. É ferramenta prática. É repertório vivo. É a diferença entre um olhar preparado e um superficial.

O elo perdido entre a arte bizantina e o Renascimento

Comecei a preparar o material. Roma, século XIII, a transição entre o mundo medieval e o que viria a ser o Renascimento. Cristianismo, Antiguidade Clássica e até uma volta à Pré-História pra preparar as bases. Entender todas essas camadas e transições históricas que a cidade eterna escancara. Mas peraí. Quem era esse tal de Pietro Cavallini que aparecia timidamente nas pesquisas? Eu não conhecia. Nunca tinha ouvido falar dele e tenho quase certeza que você também não. E olha que não sou exatamente uma iniciante nesse assunto.

Curiosa que sou, fui atrás. E descobri que Pietro Cavallini nasceu em Roma por volta de 1250 e morreu depois de 1321. Trabalhou como pintor e mestre de mosaicos num momento em que Roma tentava recuperar sua tradição artística depois de séculos de declínio político. Imagina que a cidade perdeu 97% da sua população na Idade Média! O estilo dele une naturalismo, pesquisa de volume e luz com o legado bizantino das cores profundas e fundos dourados. Ele é o elo direto entre a tradição romana e o surgimento do Renascimento no norte da Itália. Só isso.

E tem mais: Cavallini trouxe de volta a observação da figura humana, que foi deliberadamente achatada em função do crescimento e imposição da fé cristã. Em seus mosaicos e afrescos há peso, sombra, presença física. Ele não abandona o fundo dourado típico dos ícones bizantinos, mas cria modelagem suave no rosto e no corpo. O olhar dele prepara o caminho para o que, décadas depois, se tornaria a revolução de Giotto em Florença.

Só que Giotto entrou para os livros. Cavallini sumiu, ninguém sabe, ninguém viu.

Por quê? Por causa do nosso querido Giorgio Vasari, o pai da História da Arte e seu famoso livro “A Vidas dos Artistas”, publicado em 1550. Aqui no blog já falei sobre isso. Vasari escreveu a partir de uma visão toscano-centrada, florentina. Isso fez muitos artistas romanos ou do sul sumirem da narrativa. Ele cita Roma de passagem e privilegia Giotto como fundador do Renascimento. Cavallini não aparece porque não fazia parte da tradição que Vasari queria destacar. Olha só que plot twist, gente!

E aí que tá o problema: ficamos presos nessa narrativa. Cancelamento histórico que chama? Estudei história da arte formalmente, leio há décadas, vivo em Paris cercada de museus e exposições. E só descobri Cavallini agora, aos 50 anos, preparando uma aula para uma aluna que vai viajar para Roma.

A historiografia moderna pena em corrigir isso. Pra mim Cavallini é simplesmente um dos nomes mais importantes do século XIII! Mas ele ainda não está nos livros tradicionais de história da arte. Você não encontra facilmente não. Eu mesma fiquei fuçando aqui meus livros e não achei nadica.

Isso me deixou incomodada e ao mesmo tempo animada. Incomodada porque sabe lá quantos outros artistas fundamentais ficaram de fora dos livros que a gente lê pois não se encaixaram nessa narrativa vasariana. Animada porque nunca mais deixo de citar Cavallini nas minhas aulas sobre Renascimento e nem questionar as fontes de pesquisa.

Se você for a Roma, procure os fragmentos do Juízo Final (imagem abaixo) em afresco na Santa Cecilia in Trastevere . É a melhor prova da habilidade dele com volume e sombra. As figuras têm rosto humano e expressão interior. Veja também os mosaicos da Santa Maria in Trastevere, atribuídos a ele ou à oficina dele. Mostram harmonia entre cor, ritmo e desenho. E saiba que havia trabalhos na San Paolo fuori le Mura, perdidos em um incêndio de 1823, que as fontes antigas descreviam como extraordinários.

Cavallini estava lá. Fazendo uma revolução silenciosa enquanto Roma se reconstruía. E eu simplesmente não sabia.

Essa descoberta me fez pensar muito sobre o que faço. Sobre como ensino. Sobre o que escolho compartilhar. Porque quando preparei essa aula para a Gigi, não estava só passando informação. Estava viajando junto com ela. Estava aprendendo, me surpreendendo, revendo coisas que achava que sabia.

É a primeira vez que faço aulas personalizadas para viagens. E está sendo delicioso. Porque mostra que história da arte tem aplicação prática, sim. Não é só teoria flutuando no ar. É ferramenta que transforma sua experiência de estar no mundo, de ver cidades, de entender como chegamos até aqui.

E mais: esse tipo de trabalho me enriquece. Quando vou preparar uma aula dessas, eu viajo intelectualmente junto com a pessoa. Aprendo sobre os lugares que ela vai visitar. Descubro artistas que ficaram escondidos por séculos. Refaço conexões. É extraordinário.

Aliás, se alguém souber mais sobre Pietro Cavallini, se tiver referências, textos, qualquer coisa, eu adoraria receber. Porque quanto mais eu leio sobre ele, mais percebo o tamanho do buraco que existe na nossa formação. E se você quiser, como a Gigi, fazer uma viagem pela História da Arte me manda uma mensagem aqui ou veja aqui no site sobre a Mentoria Rizoma.

A prática como laboratório

Enquanto isso, a vida segue acontecendo e a pesquisa artística não para. Em dezembro apresento minha última exposição do ano em São Paulo, no Ateliê Casa Um, dentro da mostra coletiva Ambientes Inesperados: Vivência e Memória.

Levo o trabalho Artifício, feito com inteligência artificial. Criei cinco imagens usando IA como ferramenta e questiono justamente o impacto ambiental do uso dessa tecnologia e como ela responde aos comandos. É uma questão semântica: o que as ferramentas de IA entendem como cadeira de plástico?

A partir daí, percebi que os data centers de inteligência artificial utilizam muita energia e muita água. Esse trabalho foi apresentado inicialmente na COP30, em Belém, numa exposição chamada Entre o Pitoresco e o Sublime: a Natureza do Eu que escrevi o texto de curadoria junto com os Artistas Clã-Destinos, o coletivo de oito artistas do qual faço parte. Em São Paulo a novidade é que o trabalho vem com vídeo, também produzido por inteligência artificial. As pessoas vão poder acessar através de um QR code e ver a impressão dessas imagens onde a cadeira de plástico é protagonista. Mas pode acessar aqui no meu site também: versão celular ou versão desktop.

Esse modelo de cadeira feita de plástico injetado, um monobloco, nasceu nos anos 70, numa empresa francesa chamada Grosfillex. Foi copiada pelos chineses e explodiu: virou a cadeira mais onipresente do mundo. A mais feia, a que mais quebra, a que polui mais também. Você encontra nos botecos, nas praias, em todo canto. Todo mundo já usou uma cadeira dessas. E a própria inteligência artificial tem essa imagem desse tipo de cadeira gravada em sua memória.

Nesse trabalho questiono o uso excessivo da IA, a fabricação de imagens, o real, o artificial. Me baseei no primeiro capítulo do livro do Arte Moderna do Giulio Carlo Argan (que foi também prefeito de Roma, olha a coincidência), que fala justamente sobre natural e artificial. Porque hoje estamos vivendo uma nova revolução com a chegada da inteligência artificial no cotidiano das pessoas.

Conheça o Tempo de Olhar

E aí chegamos ao ponto que junta tudo isso. Todas essas descobertas, todas essas viagens intelectuais, toda essa vontade de tornar a história da arte acessível e prática me levaram a criar algo que estou lançando hoje: o Tempo de Olhar, um guia cronológico dos museus de Paris e arredores.

Esse foi um trabalho feito com muito amor, com um olhar de muito cuidado. Demorei. Fiz milhões de revisões (obrigada, Momi). Porque queria que esse guia fosse um companheiro não só para quem viaja, mas também para quem pensa em viajar para Paris, para quem sonha com a cidade antes mesmo de pisar nela.

São 16 anos vivendo aqui. Dezenas de museus visitados. Exposições inesquecíveis. A cidade em ebulição através das grandes exposições da arte ou feiras internacionalmente famosas, memórias afetivas de visitas que esquentam o coração. Juntei tudo isso num material que equilibra precisão histórica e leveza narrativa. Não é catálogo acadêmico nem roteiro turístico superficial. É uma curadoria pessoal de uma artista apaixonada pela cidade.

O diferencial é a forma de organização e leitura cronológica dos acervos e coleções. Você pode começar pelas esculturas paleolíticas do Museu de Arqueologia Nacional, passar pelas obras greco-romanas do Louvre, subir pela Idade Média em Cluny, atravessar o Renascimento em Fontainebleau, mergulhar no Barroco de Versalhes, descobrir o impressionismo no Museu d’Orsay e chegar até a arte contemporânea no Palais de Tokyo ou na Bourse de Commerce.

Mas não são apenas museus de arte. Fiz uma curadoria de 50 instituições que enriquecem a experiência de quem quer entender Paris pela visualidade. Tem o Musée des Arts et Métiers, dedicado às artes e ofícios, à história da tecnologia e da engenharia. Tem o Palais Galliera, dedicado à moda. São museus transversais, multiculturais, que mostram como a arte dialoga com design, arquitetura, ciência, moda, vida cotidiana.

Cada museu revelando como um período artístico influenciou o seguinte. Cada obra ganhando contexto dentro de uma narrativa maior. O mosaico se transformando em história coerente.

O guia vem em formato digital, com 154 páginas. Cada entrada inclui descrição do acervo, informações práticas atualizadas, dicas de quando ir e uma seção chamada Conectando Tempos, que mostra como aquele museu dialoga com outros períodos e instituições. É uma leitura que você pode fazer de várias maneiras: cronológica, temática, por região. A experiência é sua.

Tem também um mapa interativo com 50 museus geolocalizados e categorizados por período histórico. E se você curte tecnologia e praticidade como eu pode adquirir junto uma IA alimentada e treinada com todo o conteúdo do guia, que sugere roteiros personalizados e ajuda você a planejar sua experiência em Paris de forma inteligente.

Escrevi como converso: com intimidade, admitindo quando me perco, compartilhando surpresas reais. Do jeito que escrevo aqui. Porque acredito que você não precisa dominar história da arte para mergulhar nela. Precisa apenas de um olhar em construção, uma escuta atenta e a curiosidade como bússola.

O Tempo de Olhar é isso. É a ferramenta que eu gostaria de ter tido quando cheguei em Paris. É o resultado de todas as vezes que me perdi no Louvre, de todas as conexões que fui fazendo ao longo dos anos, de todas as visitas e descobertas.

Ampliar o olhar

No fim, é tudo sobre isso. Sobre criar pontes entre o que aconteceu há séculos e o que vivemos hoje. Sobre entender que história da arte não é coisa morta. É repertório vivo que transforma a forma como você vê o mundo e seus museus.

Seja preparando uma viagem para Roma e descobrindo um artista fundamental que ficou esquecido por 500 anos, pelo menos pra mim. Seja questionando o impacto ambiental da inteligência artificial através de cadeiras de plástico e a poluição estética e ambiental que ela causa. Seja organizando 50 museus de Paris numa linha do tempo que faz sentido.

É sobre se dar tempo para ver. Sobre transformar a experiência de estar vivo num lugar em algo que fica, que marca, que muda você por dentro.

E se você quiser conhecer o Tempo de Olhar, ele está disponível agora. É para quem, como eu, acredita que arte não é somente luxo. É necessidade. É alimento. É a forma mais bonita que a gente tem de conversar através dos séculos.


Tempo de Olhar - Guia Cronológico dos Museus de Paris e Arredores
Disponível em formato digital

Ambientes Inesperados: Vivência e Memória
Artistas Clã-Destinos + Grupo Trilha com curadoria de Marcio Harum e Nancy Betts

Abertura: 3 de dezembro de 2025, quarta-feira, das 16h às 22h

Ateliê Casa Um
Rua José Maria Lisboa, 873 casa 1 - Jardim Paulista
São Paulo

Visitação: até 20 de dezembro
Terça a sábado, 13h às 18h
Entrada gratuita

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