Os garimpeiros do conhecimento

Primeira impressão latina de 1552 do De Architectura de Vitruvius

Nas últimas semanas eu tive o prazer de preparar algumas aulas sobre Roma e Florença para uma aluna que vai viajar para a Itália. E me dei conta de algo: eu falava muito sobre Brunelleschi, Botticelli, Michelangelo, mas não respondia com profundidade uma questão fundamental: por que o Renascimento aconteceu em Florença? Por que ali, naquele momento?

Aí me deparei com um nome que eu nunca tinha ouvido falar: Poggio Bracciolini.

Poggio foi o homem que encontrou o tratado de arquitetura de Vitrúvio em 1414. Sem esse achado, Brunelleschi não teria construído a cúpula da catedral Santa Maria del Fiore em Florença como construiu. Em 1417, Poggio encontrou o De rerum natura de Lucrécio, trazendo de volta toda uma filosofia sobre o corpo e a natureza. Como é que eu nunca tinha ouvido falar sobre ele?

Percebi que eu estava contando a história do Renascimento sem esse embasamento fundamental. Estava falando dos artistas, mas não dos garimpeiros, dos caçadores de manuscritos que tornaram possível que esses gênios criassem.

Então resolvi dar uma de Indiana Jones. Mergulhei nessa pesquisa como Poggio entrava nos mosteiros: remexendo, descobrindo, conectando pontos. E encontrei uma rede extraordinária de humanistas que se correspondia, trocava descobertas, copiava manuscritos e circulava conhecimento por toda a Europa.

Este texto é uma tentativa de preencher essa lacuna. De poder explicar que a cúpula de Brunelleschi existe porque um homem entrou num mosteiro frio na Suíça em 1414. Que o Nascimento de Vênus existe porque outro homem traduziu todo Platão e recriou uma filosofia sobre beleza.

O Renascimento não foi um milagre. Foi trabalho.

HUMANISMO NÃO É A MESMA COISA QUE ANTROPOCENTRISMO

Antes de contar essa história, preciso esclarecer algo fundamental. Existe uma confusão entre humanismo e antropocentrismo. E entender a diferença muda completamente a forma como olhamos para o Renascimento.

Humanismo é um movimento intelectual surgido no século XIV que coloca o ser humano no centro da investigação filosófica, ética e artística, mas sem excluir Deus. O foco é o estudo das capacidades humanas, a dignidade da pessoa, a razão, a educação, o retorno aos autores antigos como modelo de virtude.

O humanista acredita que o ser humano pode se aperfeiçoar pela leitura, reflexão e ação moral. Ele valoriza história, retórica, filosofia e a formação integral do indivíduo.

Antropocentrismo é uma visão filosófica mais ampla. É uma mudança de posição em relação ao teocentrismo medieval. No antropocentrismo, o ser humano se torna medida e referência de interpretação do mundo. Essa ideia pode existir dentro ou fora do humanismo.

A diferença central é esta: humanismo é um projeto cultural. Antropocentrismo é uma visão de mundo.

E aqui está a parte interessante: o humanismo favorece o antropocentrismo, mas não elimina Deus. Quando os humanistas buscavam textos antigos, eles não estavam rejeitando a fé cristã. Estavam ampliando o repertório, integrando a sabedoria clássica à experiência espiritual.

O humanismo é, no fundo, generoso. Ele confia que o ser humano pode crescer, aprender, se transformar através da educação. Não é sobre estar no centro de tudo. É sobre ter responsabilidade com o mundo.

OS CAÇADORES DE MEMÓRIA

Essa história me fascina profundamente: homens obcecados por livros esquecidos, viajando pela Europa em busca de manuscritos cobertos de poeira. Eles não eram simples leitores. Eram garimpeiros de conhecimento, arqueólogos do pensamento. E sem eles, grande parte da filosofia, literatura e ciência da Antiguidade teria desaparecido para sempre.

Vou contar aqui a história de quatro desses homens. Na semana que vem, vou completar essa rede mostrando os outros personagens essenciais: Coluccio Salutati, o chanceler que orquestrou tudo; Manuel Chrysoloras, o bizantino que trouxe o grego de volta; Leonardo Bruni, que inventou a historiografia moderna; e os jovens prodígios Pico della Mirandola e Angelo Poliziano. Mas hoje, quero começar pelos pioneiros.

PETRARCA: O PRIMEIRO CAÇADOR (1304-1374)

Francesco Petrarca foi quem começou tudo. Nascido em 1304, ele não era simplesmente o poeta que cantou Laura em sonetos perfeitos. Era um homem consumido pela paixão pelos textos antigos. Ele viajava incansavelmente pela Europa, entrando em bibliotecas, fazendo amizades estratégicas, pedindo a conhecidos que investigassem prateleiras de mosteiros à procura de códices perdidos. Transformou seus amigos em verdadeiros caçadores de recompensas. A missão era clara: encontrar livros antigos.

Em 1333, Petrarca descobriu as cartas Pro Archia de Cícero em Liège. Em 1345, encontrou pessoalmente uma coleção inédita de cartas de também de Cícero (as Cartas a Ático) na Biblioteca Capitular de Verona. Esses achados mudaram tudo. Eram janelas para um mundo perdido, para uma forma de pensar que tinha sido esquecida durante quase mil anos.

Petrarca gastava grande parte de sua fortuna comprando manuscritos. Sua biblioteca foi doada à cidade de Veneza e hoje faz parte do núcleo da Biblioteca Marciana. Quando morreu em 1374, foi encontrado com a cabeça recostada sobre um volume de Virgílio. Não consigo pensar em morte mais apropriada para um homem assim.

Ele criou um método. Desenvolveu princípios de crítica textual, comparou versões, questionou autenticidade. E mais importante: espalhou a ideia de que estudar os antigos era forma de se tornar melhor, de educar o espírito, de recuperar a dignidade humana. Uma curiosidade: foi ele quem cunhou o termo Idade das Tevas para falar sobre a Idade Média.

Sem Petrarca, não existiria Renascimento.

BOCCACCIO: O AMIGO INCANSÁVEL (1313-1375)

Giovanni Boccaccio, nascido em 1313, é mais conhecido pelo Decameron, coleção brilhante de cem contos. Mas Boccaccio era muito mais do que um contador de histórias. Era um erudito obcecado, um caçador de manuscritos tão dedicado quanto Petrarca.

Boccaccio passou a vida procurando manuscritos latinos escondidos em bibliotecas monásticas por toda a Itália. Depois de encontrar os textos, ele copiava, organizava, fazia circular. Foi um dos primeiros a dedicar esforço sistemático à mitologia clássica, criando genealogias completas dos deuses gregos e romanos.

Sua amizade com Petrarca, iniciada em 1350 e que durou até a morte do amigo em 1374, foi uma das parcerias intelectuais mais importantes do Renascimento. Eles trocavam livros, discutiam textos, se apoiavam. Em 1366, Boccaccio enviou a Petrarca um exemplar da Ilíada. Petrarca respondeu com alegria: "a chegada de Homero encheu de alegria todos os latinos e os gregos da biblioteca".

Era assim que funcionava. Uma rede de trocas, de generosidade intelectual, de paixão compartilhada.

O trabalho de Boccaccio consolidou o estudo das fontes antigas e facilitou o acesso à Antiguidade para os humanistas posteriores. Boccaccio morreu em 1375, apenas um ano depois de Petrarca, profundamente entristecido pela perda do amigo. Mas seu legado permaneceu. Ele tinha ajudado a criar o gosto pela Antiguidade como algo vivo, útil, transformador.

POGGIO BRACCIOLINI: O GARIMPEIRO INCANSÁVEL (1380-1459)

Poggio nasceu em 1380 na Toscana, filho de família sem fortuna. Estudou latim e sua habilidade como copista chamou a atenção de mentores importantes que o apadrinharam. Mas o que define Poggio é essa obsessão maravilhosa por manuscritos perdidos.

Entre 1414 e 1417, ele viajou por mosteiros da Suíça, Alemanha e França. Entrava em bibliotecas em ruínas, depósitos monásticos frios e esquecidos, remexia pilhas de manuscritos empoeirados. Quando encontrava algo valioso, copiava com velocidade impressionante e enviava para amigos em Florença.

Em 1414, encontrou o De architectura de Vitrúvio na biblioteca de Saint Gall, na Suíça. É difícil exagerar o impacto desse achado. Esse texto se tornou a base de toda a arquitetura renascentista. Brunelleschi, Alberti, Leonardo, todos beberam dessa fonte.

Em 1417, num mosteiro em Fulda, na Alemanha, encontrou o De rerum natura de Lucrécio, a única obra sobrevivente do poeta. Com esse livro voltou toda uma filosofia sobre o corpo, a natureza, os átomos, a sensação.

Poggio também descobriu orações perdidas de Cícero, a Institutio Oratoria de Quintiliano (um tratado completo sobre retórica que estava perdido), poemas, obras de teatro, textos históricos. Cada descoberta era uma vitória. Cada manuscrito salvo era um pedaço de civilização recuperado.

O trabalho de Poggio reintroduziu textos fundamentais que reconstruíram a ciência, a filosofia e a arquitetura antigas. Poggio viveu muito tempo, teve uma carreira longa e morreu em 1459, aos 79 anos. Deixou um legado impressionante. Não somente os textos que descobriu, mas o exemplo de uma vida dedicada à busca do conhecimento. Poggio viveu o suficiente para ver a ascensão de Cosimo de' Medici, o grande patrono do humanismo florentino. Nos últimos anos de sua vida, quando foi chanceler de Florença entre 1453 e 1458, Poggio testemunhou como Cosimo investia fortunas em manuscritos, bibliotecas e na formação de jovens humanistas. Era um novo tempo para Florença.

MARSILIO FICINO: O TRADUTOR DE PLATÃO (1433-1499)

Marsilio Ficino nasceu em 1433 e representa a segunda geração do humanismo florentino. Mas seu papel foi absolutamente crucial. Ficino era filósofo, sacerdote e tradutor. E foi ele quem trouxe Platão de volta ao Ocidente.

Sem o trabalho dos caçadores de manuscritos que vieram antes dele, Ficino não teria tido acesso aos textos platônicos. Mas foi ele quem, entre 1463 e 1470, traduziu todo o corpus platônico para o latim. Todo. Não apenas alguns diálogos. O conjunto completo da obra de Platão.

Isso foi uma revolução intelectual. A filosofia de Platão voltou a circular pela Europa. E com ela veio toda uma forma de pensar sobre a alma, a beleza, o amor, a luz. Ficino também traduziu as Enéadas de Plotino e os textos herméticos. Ele criou o neoplatonismo renascentista, integrando a filosofia antiga ao cristianismo. Fundou a Academia Platônica em Florença, um círculo de estudos que reunia os maiores pensadores da época.

E aqui entra novamente um nome essencial: Cosimo de' Medici. Foi Cosimo, o patriarca da família Médici, quem reconheceu o gênio de Ficino e lhe deu os meios para realizar seu trabalho. Em 1462, Cosimo presenteou Ficino com uma villa em Careggi e uma coleção de manuscritos gregos de Platão. Disse a ele: traduza esses textos. Cosimo morreu em 1464, mas seu neto Lorenzo de' Medici, o Magnífico, continuou o patronato. Lorenzo transformou a Academia Platônica de Ficino no coração intelectual de Florença. Sem os Médici, Ficino não teria tido nem o tempo nem os recursos para fazer o que fez.

A influência de Ficino foi imensa. Botticelli pintou o Nascimento de Vênus e a Primavera inspirado nas ideias neoplatônicas de Ficino sobre beleza e amor. Michelangelo absorveu essas ideias e as transformou em escultura e pintura. Leonardo da Vinci estudou com pessoas que tinham bebido dessa fonte. Toda a cultura estético-moral de Florença no final do século XV foi moldada por Ficino.

Ficino reestruturou a filosofia antiga e mostrou que era possível integrar platonismo e cristianismo sem contradição. Ele não via conflito entre fé e razão, entre a sabedoria dos gregos e a revelação cristã. E essa visão generosa, inclusiva, marcou o Renascimento.

UMA REDE, NÃO HERÓIS SOLITÁRIOS

O que eu acho maravilhoso nessa história toda é que esses homens não trabalhavam sozinhos. Eles formavam uma rede. Escreviam cartas, trocavam livros, discutiam textos, se apoiavam, se criticavam, se admiravam.

Petrarca e Boccaccio eram grandes amigos. Poggio foi fundamental pra arquitetura. Ficino estudava com base nos textos que Poggio tinha descoberto. Essa rede tornou possível que textos esquecidos em um mosteiro na Suíça chegassem a Florença em questão de meses. Que uma descoberta feita por um humanista fosse discutida por dezenas de outros. Que o conhecimento circulasse, se espalhasse, se transformasse em movimento cultural.

Pintura de Cosimo de Médicis, o Velho. Jacopo Pontormo, 1519-20

E essa rede não era composta apenas de gênios criadores. Era composta de intermediários, de pontes, de guardiões de memória. Poggio não era filósofo. Mas sem ele, não haveria matéria-prima para que filósofos pensassem e poetas criassem. Eles tornavam possível que outros gênios existissem. E havia também patronos essenciais. Cosimo de' Medici e depois seu neto Lorenzo não eram apenas banqueiros ricos. Eram homens que entendiam que investir em cultura era investir no futuro de Florença. Cosimo deu a Ficino uma villa e manuscritos. Lorenzo reuniu ao seu redor os maiores pensadores e artistas da época. Os Médici tornaram possível que essa rede funcionasse, que os humanistas tivessem tempo e recursos para trabalhar.

Na semana que vem, vou completar essa história mostrando os outros personagens essenciais dessa rede: Coluccio Salutati, o chanceler que orquestrou tudo em Florença; Manuel Chrysoloras, o erudito bizantino que trouxe o grego de volta ao Ocidente; Leonardo Bruni, que inventou a historiografia moderna e defendeu Florença como herdeira da República Romana; e os jovens prodígios Giovanni Pico della Mirandola e Angelo Poliziano, que levaram o humanismo ao seu ponto mais alto.

Porque essa história não termina aqui. Ela só está começando e continua semana que vem.


PARA SABER MAIS

Livros em português sobre humanismo e Renascimento:

GARIN, Eugenio. Ciência e Vida Civil no Renascimento Italiano. São Paulo: Editora Unesp, 1996.

GARIN, Eugenio. O Homem Renascentista. Lisboa: Editorial Presença, 1991.

GREENBLATT, Stephen. A Virada: O Nascimento do Mundo Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (Sobre a descoberta do De rerum natura por Poggio Bracciolini)

SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Obras dos humanistas traduzidas para o português:

PETRARCA, Francesco. Cancioneiro. Tradução de José Clemente Pozenato. Cotia: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2014.

BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

FICINO, Marsilio. Sobre o Amor ou Comentário ao Banquete de Platão. Rio de Janeiro: Numen, 1993.

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