O Olhar sobre o Outro: Manet e Degas

Olympia. Manet, 1863

“Ele era maior do que pensávamos...”. As palavras de Edgar Degas, pronunciadas no funeral de Édouard Manet, reverberam na exposição do Musée d’Orsay como uma revelação tardia e uma homenagem silenciosa. Ao reunir as obras desses dois artistas centrais do século XIX, o museu propõe mais do que um diálogo estético: oferece um jogo de espelhos entre duas personalidades que se observaram atentamente ao longo da vida.

Manet e Degas eram contemporâneos e filhos da mesma Paris burguesa, inquieta, em transição. Abandonaram o Direito, frequentaram o Louvre como copistas de mestres antigos e caminharam por salões, cafés, teatros e ateliês em busca de uma nova linguagem. Retrataram a cidade moderna sob pontos de vista diversos, por vezes convergentes, por vezes francamente opostos. Ambos flagraram a vida como ela é, mas com lentes distintas: Manet com seus contrastes abruptos e figuras desafiadoras; Degas com a observação minuciosa, quase voyeurística, do que se passa entre bastidores.

Ambos frequentavam os mesmos ambientes artísticos e intelectuais: Berthe Morisot, Claude Monet, Fantin-Latour e outros nomes da vanguarda parisiense orbitavam os mesmos salões e círculos de discussão. Esseas trocas fomentaram colaborações, intensos compartilhamentos e, não raramente, fricções. A exposição destacou como esses espaços não somente aproximaram Manet e Degas, mas também iluminaram suas diferenças, permitindo que cada um construísse um posicionamento singular frente ao nascente movimento impressionista.

Embora tenham participado das mesmas dinâmicas culturais, suas escolhas artísticas seguiram caminhos distintos. Manetrecusou participar das exposições impressionistas, preferindo buscar a consagração institucional através dos Salões oficiais. Degas, ao contrário, foi um dos principais articuladores dessas exposições, ainda que também mantivesse certa distância do estilo mais espontâneo e luminoso de Monet e seus seguidores. Degas não pintava como Monet, e Manetnão expunha como Degas. Essa ambivalência estética e institucional contribui para uma compreensão mais aprofundada do que chamamos de Impressionismo, e a exposição do Musée d’Orsay explorou com riqueza essas zonas de contato e dissenso.

A mostra convidou o visitante a acompanhar esse vai-e-vem de olhares: ora confrontando temas semelhantes como as cenas de café, as mulheres nuas, as corridas de cavalo; ora ressaltando as divergências de estilo, intenção e composição. Manet, influenciado pela pintura espanhola e pela tradição clássica, mantinha uma pintura cheia de contrastes e frontalidade. Degas, mestre do desenho e da cor, preferia a obliquidade, a composição inusitada, a observação do gesto interrompido.

Apesar de tantos encontros, um dado curioso chama atenção: Manet nunca retratou Degas. Já Degas pintou o amigo várias vezes, inclusive em um quadro famoso que o mostra ao lado da esposa ao piano. Um gesto de afeto interrompido por um mal-entendido: Manet, incomodado com o retrato da esposa, mutilou a tela. Degas, ofendido, recolheu o presente. Esses pequenos dramas dizem tanto quanto os quadros.

No fim, talvez essa relação conturbada entre os dois artistas nos fale também sobre o que é ser artista: observar o outro é, muitas vezes, uma forma de se ver também. E nessa arte do olhar, nenhum dos dois se esquivou da complexidade. ManetDegas olharam um ao outro como quem examina o mundo. E é esse espelho, tão sutil quanto radical, que a exposição nos devolve.

A Banheira. Degas, 1866

  1. Autorretrato. Edgar Degas, 1855

  2. Autorretrato com a paleta. Édouard Manet, 1878/79

  3. Absinto. Edgar Degas, 1875/76

  4. Nana. Édouard Manet, 1877

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